Jinga de Angola - A rainha guerreira da África
“Veja você, nós não entendemos. Nós estamos no meio [do nada]. Primeiro, vieram os alemães – e os australianos os expulsaram. Depois os japoneses expulsaram os australianos. Mais tarde, os australianos e os estadunidenses forçaram os japoneses a irem embora. Nós não pudemos fazer nada. Quando um kiap [um oficial administrativo] nos mandava carregar suas bagagens, nós as carregávamos. Quando um alemão nos dizia para carregar a bagagem dele, nós obedecíamos. Quando um japonês nos dizia para carregar a bagagem dele, nós tínhamos de carregar. Se não o fizéssemos poderíamos ser mortos. Tudo bem, é isso. Pegar ou largar. Nogat tok. Eu não disse nada demais, isso é como as coisas são, isso é a vida”.
A passagem acima corresponde a parte de um depoimento
dado ao antropólogo canadense Kenelm Burrigde por um aldeão de Papua Nova Guiné.
O livro, do qual o trecho foi retirado, foi lançado em 1995. Apesar de dizer respeito
a culturas e tempos diferentes, essa passagem é importante para demarcar um
ponto em comum entre os contemporâneos do aldeão e de Jinga: a dominação por
povos ditos ‘avançados’. A história de Jinga começa em 1582 em Ndongo, hoje
pertencente a Angola. Ndongo fazia fronteira com o Congo, sendo este o único reino
da África Central conhecido pelos europeus. A relevância de tal acontecimento é
que desde 1491 o Congo se convertera ao catolicismo fato que marcaria toda a
trajetória de Jinga.
A história trazida por Linda M. Heywood mostra o
percurso vitorioso de uma mulher que passou a vida toda lutando contra a ocupação
portuguesa de Angola. Seus feitos não deixaram nada a desejar a outras rainhas igualmente
grandiosas e mais populares como Elizabeth I e Catarina, a Grande e moldaram
toda uma geração de guerreiros e orgulhosos angolano que perdura até os dias
atuais. Marcada por uma complexidade ímpar, Jinga tem na religião um fator
importante de poder. Ao mesmo tempo em que incentivou as práticas pagãs locais
num primeiro, o que em certa medida assegurou a confiança dos seus subordinados,
introduziu e reforçou o catolicismo no seu reino em momentos posteriores.
Essa mudança na orientação religiosa mostra a apurada
visão estratégica que a rainha de Angola possuía, na medida em que o laço com o
catolicismo permitiu-lhe angariar o apoio de Roma fazendo frente às investidas
de Portugal. Na proporção em que Jinga se comprometia com o cristianismo, a
mulher desenhada como selvagem, rebelde e perigosa pela coroa portuguesa,
passava a ser vista como dócil e civilizada pelos europeus. Foi justamente essa
mudança na imagem de Jinga que a permitiu, não apenas governar Ndongo em
relativa paz nos últimos anos, como passar o reino para sua irmã após sua
morte.
Contudo, a religiosidade não é um ponto pacífico. Ao
mesmo tempo em que a abertura para o catolicismo permitiu que Jinga governasse,
foi justamente a religião que tornou a presença dos europeus tão poderosa na
região. No momento em que Congo e Ndongo aceitam a dominação portuguesa a
dinâmica política e social baseada nas guerras tribais e captura dos inimigos se
transforma em comercialização e tráfico de escravos. Nesse sentido, é
importante deixar claro que reis e rainhas africanos alimentaram esse tipo de
comércio inexistente até a chegada da coroa portuguesa. Além do tráfico
negreiro, os portugueses e a religião cristã combateram fortemente os casamentos
poligâmicos, tornando-se Jinga uma das principais entusiastas das relações
monogâmicas.
Apesar de toda subjugação cultural que o catolicismo e os europeus frequentemente introduziam em suas colônias, felizmente em Ndongo eles não conseguiram menosprezar o poder feminino. Jinga, como raros governantes, conseguiu propagar-se no imaginário coletivo chegando até a atualidade. Seu exemplo de força e resistência incentivou e incentiva a luta contra a dominação estrangeira e contra o machismo que vê as mulheres como fracas, excessivamente guiadas pela emoção e sem visão estratégica.
Jinga de Angola - A rainha guerreira da África
Linda M. Heywood
Todavia
2019
320 páginas
Tradução: Pedro Maia Soares
Pósfácio: Luiz Felipe de Alencastro
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