Postagens

A festa da insignificância

Imagem
A festa da insignificância seria mais apropriadamente intitulada a festa da aparente insignificância. Isso porque o entendimento sobre a razão do umbigo feminino ter se tornando um dos centros de atração sexual pode parecer banal se não considerarmos o valor simbólico que essa região adquire desde tempos bíblicos. A reflexão sobre o umbigo traz à tona duas importantes implicações: o umbigo liga a mãe a/ao filha/o ao mesmo tempo em que nada representa mais a existência do que essa pequena e (aparentemente) insignificante parte do corpo humano. Diante disso, por que sexualizá-lo? Seria ingênuo da nossa parte levantar tal questionamento se não soubéssemos que tudo que remente ao feminino é facilmente sexualizado. Está aí o peito da mulher que se converte em seio para virar objeto de desejo dos homens. A discussão em torno do umbigo se torna ainda mais profunda quando conhecemos a história de um dos personagens do livro. Alain, ainda criança, foi definitivamente abandonado pela mãe que qu

Mulheres e animais: instintos

Imagem
  Em seu livro O que diriam os animais? , Vinciane Despret argumenta como cientistas transformaram “motivações” em “instintos” numa tentativa de transformar os estudos sobre comportamento animal em uma ciência. Na medida em que as explicações sobre determinadas atitudes adquirem um viés científico, elas passam a ser explicadas a partir de uma série de regras objetivamente comprováveis. Como resultado, esses atos começam a ser vistos como independentes da vontade do animal. Nasce aí o instinto como explicação para o comportamento desse tipo de ser vivo. Nesse sentido, Despret escreve que “Os cientistas que herdaram essa história manifestam, por conseguinte, uma desconfiança intensa a respeito de qualquer atribuição de motivos aos animais – especialmente se tais motivos são complicados ou, pior ainda, assemelham-se aos que um humano poderia ter em circunstâncias parecidas. O instinto, nesse contexto, é a causa perfeita: ele escapa a toda explicação subjetiva e é, ao mesmo tempo, causa

Walden ou a vida nos bosques

Imagem
Não era para ser, mas Walden ou a vida nos bosques foi uma leitura extremamente difícil e cansativa. Não que a obra seja complexa, na verdade, corresponde a uma espécie de diário do período em que Thoreau viveu próximo ao lago Walden, no EUA, e longe da vida urbana. É, portanto, uma leitura fácil. O problema desse livro é que ele é repleto de descrições. A maior parte dos capítulos dizem respeito à descrição do jardim, do lago, dos animais locais, das características ambientais no inverno e coisas do tipo. Como não sou o tipo de pessoa que aprecia textos descritivos levei mais de um mês para terminá-lo e não sem pensar várias vezes em abandonar a leitura. O livro conta a experiência pela qual Thoreau passou ao viver durante dois anos, dois meses e dois dias na floresta numa experiência que o permitiu construir a própria cabana, trabalhar o mínimo possível para se sustentar, se alimentar do que produzia e dispensar muitos momentos contemplando a natureza. Em várias situações, Walden ou

A vontade das coisas

Imagem
Em um ensaio “caprichado”, nas palavras de Monique David-Ménard, a autora relaciona psicanálise, antropologia e filosofia para discutir sobre o papel dos objetos na vida política contemporânea. A partir do prefácio escrito por Virgínia Ferreira da Costa é possível perceber que a argumentação é complexa e envolve alguns conceitos próprios dessas áreas de conhecimento, e outros já elaborados por David-Ménard em produções anteriores. Na minha opinião, a primeira dificuldade aparece aí: entender o que significam esses conceitos sem ter tido contato com produções anteriores da autora, além de restritos conhecimentos sobre psicanálise e filosofia.   Não sei se se trata de uma falha da tradução ou da própria argumentação de David-Ménard mas a escrita também não ajuda muito a compreensão. Além de “jogar” os conceitos como se assumisse que o/a leitor/a já os conhece, a autora relaciona uma área de conhecimento com a outra sem que uma ponte entre elas seja feita de forma clara. Por isso mesm

Atos humanos

Imagem
Em Atos humanos Han Kang traz mais uma obra potente, desconfortável, dura e bela. Ao contar um dos episódios mais violentos vividos pela Coreia do Sul em 1980, Kang nos faz ver e sentir o massacre de Gwangju a partir de 7 narrações. Cada uma delas mostra o ponto de vista de quem direta ou indiretamente vivenciou esse período. Como um acontecimento capaz de gerar uma memória coletiva bastante forte, a insurreição popular ocorrida entre 18 e 27 de maio de 1980 contra a ditadura de Chun Doo-hwan é algo que parece se manter vivo no imaginário popular. Em especial, por causa do números de vítimas e pela intensidade da reação do governo militar. Em um contexto marcado pela violência, onde muitos jovens foram duramente assassinatos pela mão do Estado vemos que como se desenham os atos humanos que dá título à obra. Atos estes que marcam tanto os jovens revolucionários que sonham com uma trajetória política diferente e que resistem, quanto jovens policiais que massacram, atiram em indefeso

Ubu Rei

Imagem
Inspirado em um professor de matemática tirânico e grotesco, Ubu pode facilmente representar toda e qualquer figura de autoridade que consideramos grotesca. E a verdade é que nesses tempos de pós-golpe, em que temos sofrido nas mãos do governante mais incompetente da história desse país, é impossível não ver Ubu Rei como representação de Bolsonaro. Assim, como esse personagem de carne e osso, a criação de Alfred Jarry é “burlesca, cruel, covarde, estúpida, infernal” como coloca Otto Maria Carpeaux. Ubu tem a índole de um humano imoral, ainda que não saibamos se ele é de fato um ser humano, que usurpa o trono de Lugar Nenhum, vulgo Polônia, praticando um regicídio. Est(r)úpido do jeito que é, Ubu precisa de uma mente brilhante e pragmática por trás de todas as suas ações e essa genialidade é desempenhada por sua esposa, a Mãe Ubu. Mãe Ubu representa a pessoa responsável, por desde o início, cultivar no marido tanto o sentimento de insatisfação com o atual cargo de capitão dos drag

A trama da vida

Imagem
Dois elementos em A trama da vida , de Merlin Sheldrake, que mais me chamaram atenção foram 1) a interlocução que o autor faz entre ciência e vida cotidiana e 2) a sugestão de uma perspectiva que tira o ser humano do foco de análise. É claro que não dá para excluir totalmente a humanidade de toda e qualquer análise científica, até porque é justamente o ser humano um dos principais responsáveis pelo propagação dos fungos. No entanto, o que Sheldrake sugere - e eu assino embaixo - é que abandonemos a perspectiva antropocêntrica tão difundida e amplamente aceita. Acredito que esse é um movimento importante, tanto para a vida acadêmica quanto para a vida cotidiana. Pensar que não somos a base ou mesmo o princípio de tudo e que muito menos tudo o que existe tem como função nos servir é um dos aprendizados mais valiosos que A trama da vida me deu. E essa forma de ver a vida é bastante desafiadora, mas Sheldrake é magnânimo em apresentar alguns exemplos que podem convencer até os/as mais c