A trama da vida

Dois elementos em A trama da vida, de Merlin Sheldrake, que mais me chamaram atenção foram 1) a interlocução que o autor faz entre ciência e vida cotidiana e 2) a sugestão de uma perspectiva que tira o ser humano do foco de análise. É claro que não dá para excluir totalmente a humanidade de toda e qualquer análise científica, até porque é justamente o ser humano um dos principais responsáveis pelo propagação dos fungos. No entanto, o que Sheldrake sugere - e eu assino embaixo - é que abandonemos a perspectiva antropocêntrica tão difundida e amplamente aceita.

Acredito que esse é um movimento importante, tanto para a vida acadêmica quanto para a vida cotidiana. Pensar que não somos a base ou mesmo o princípio de tudo e que muito menos tudo o que existe tem como função nos servir é um dos aprendizados mais valiosos que A trama da vida me deu. E essa forma de ver a vida é bastante desafiadora, mas Sheldrake é magnânimo em apresentar alguns exemplos que podem convencer até os/as mais céticos/as a tentar seguir por esse caminho. Por exemplo, no último capítulo, onde vai ser falado mais detidamente sobre as leveduras, Sheldrake observa que para a produção de pão e de cerveja precisamos alimentar os fungos – o fermento – antes de nos alimentarmos. De algum modo, as leveduras nos domesticaram, como coloca o próprio autor.

Ainda que muitos resistam em aceitar essa ideia, o que Sheldrake propõe é pensarmos em termos de uma inteligência fúngica, e um outro caso trazido por ele não me deixa pensar de outro modo. Em um outro capítulo, intitulado “Mentes miceliais”, o autor discorre sobre como os “fungos-zumbis” conseguem modificar o comportamento de seu hospedeiro em benefício dos fungos, isto é, ajudar a dispersar os esporos. A forma como esses fungos-zumbis fazem isso é retirando do inseto parasitado toda a sua autonomia. Conforme Sheldrake discute mais longamente em outra ocasião, essa relação que pode ser vista como competitiva também poderia ser enxergada como simbiótica. Na verdade, tudo vai depender de qual perspectiva social, econômica e política se parte.

A trama da vida além de belamente escrito estabelece uma conversa muito rica com as ciências sociais, em especial, com a antropologia, o que para mim foi um deleite a parte. Isso é extremamente importante se queremos superar um viés antropomórfico, como parece ser um dos objetivos principais do livro. Isso porque a antropologia é atualmente uma das áreas de conhecimento que mais contesta uma perspectiva universalista e intrinsecamente biologizante e coloca na linha de frente o aspecto cultural. E cultura envolve não apenas os humanos, mas fauna, flora, coisas e, por que não, fungos. Acredito que essa obra é acima de tudo apaixonada – no melhor sentido da palavra - e por isso mesmo, apaixonante. A cada capítulo, meu olhar sobre os fungos ia se modificando e no final do livro já era uma convertida e defensora do mundo fúngico.

Ao longo da leitura, não apenas meu olhar sobre os fungos foi mudando, mas sobre a vida como um todo: a forma de me relacionar com o natural e com a natureza, entendendo que os humanos não são a medida de tudo; a maneira de pensar o mundo acadêmico, compreendendo que é possível fazer ciência e produzir conhecimento sem estar na academia... Em relação a esse último ponto, Sheldrake mostra uma possibilidade de contribuir para a ciência sem estar fechado entre os muros da universidade. Por meio dos “cientistas cidadãos”, micólogos autodidatas que se dedicam a coletar e identificar fungos, a realização de projetos de pesquisas envolvendo fungos têm sido possível. Com isso ganha a ciência e os próprios cientistas, ao terem à sua disposição uma vasta gama de informações recolhidas por outras pessoas e dos mais diversos lugares. Fiquei pensando o tanto que ajudaria a produção de conhecimento e de senso crítico se tivéssemos mais cientistas cidadãos.

A trama da vida é um livro com potencial para criar uma legião de apaixonados/as pelos fungos, o que por si só, é maravilhoso, tendo em vista que como o próprio livro diz “os fungos constroem o mundo”. É também uma obra que guarda uma sensibilidade rara ao falar sobre um assunto que a princípio pode soar desinteressante. Minha dica é: não se iluda e invista nessa leitura, porque Sheldrake e seus/nossos fungos são envolventes e apaixonantes.


A trama da vida
Merlin Sheldrake
Fósforo e Ubu Editora
2021
363 páginas
Tradução: Gilberto Stam

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