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Mostrando postagens de março, 2021

Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade

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Apenas numa sociedade normatizada e dominada pela disciplina “transgredir” se torna sinônimo de liberdade. E assim como tudo na vida, a educação tem que ser libertadora; tem que ensinar como se livrar das amarras do patriarcado, do sexismo, do racismo, das diferenças de classe e de gênero. Em suma, tem que ensinar a transgredir. Isso é o que apresenta bell hooks nessa obra que fala abertamente sobre ensino, mas não só isso. Diversos temas contemporâneos e muito pouco explorados na sala de aula são expostos pela autora como estratégias para manter a aula um ambiente acolhedor e atualizado.  Um desses exemplos explorados já nos últimos capítulos do livro diz respeito aos afetos. Ao invés de camuflados por uma capa de racionalidade que caracteriza o intelectualismo acadêmico e pedagógico, hooks defende a expressão de sentimentos no ambiente de ensino. Ao invés de ameaçadores, os sentimentos proporcionam a saudável aliança entre mente e corpo. Nesse sentido, a ausência do “corpo” na sala d

Orlando: uma biografia

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Orlando , de Virginia Woolf , provoca um espanto parecido com o causado por Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Explico. Ambos são inovadores e impensáveis nas histórias que trazem. Na obra machadiana um defunto é quem conta sua história, já na virginiana a história contada por um(a) biógrafo(a) diz respeito a um garoto que ao longo de cinco séculos transmuta-se e torna-se mulher, no sentido mais literal possível. Não bastasse a ousadia de escrever uma biografia que abarca 500 anos da vida de uma mesma pessoa, Woolf ainda presenteia o leitor com um tema ainda incomum naquela sociedade do século XX: sexualidade. Orlando , um aristocrata nascido homem, depois de viver todas as alegrias e angústias que uma sociedade patriarcal assegura aos representantes do sexo masculino transformar-se após um transe de sete dias em uma mulher e, de igual modo, passa a experienciar todas as alegrias e angústias que cabem a uma representante do sexo feminino de qualquer época. As al

O cadete e o capitão: a vida de Jair Bolsonaro no quartel

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Às vezes o destino também premia os maus. Em O cadete e o capitão , de Luiz Marklouf Carvalho , a vida de Jair Bolsonaro é traçada desde sua entrada na vida militar em 1973, quando é aprovado na Escola Preparatória de Cadetes do Exército (EsPCEx), até sua saída 1988, ano em que é excluído da ativa após julgamento no Superior Tribunal Militar (STM). Chamando atenção para as diversas infrações cometidas pelo então cadete, o autor busca relatar fielmente os acontecimentos até chegar ao clímax do livro: Operação Beco sem Saída, cujo julgamento resultou na ida do atual presidente da república para a reserva. Por meio da análise de documentos obtidos junto ao STM, bem como de reportagens da época e de entrevistas com militares e jornalistas, Marklouf ajuda o leitor a compreender um pouco mais sobre o meio militar, o espírito que comanda esse meio e a sua influência na personalidade de Jair Bolsonaro. Por mais que o autor não faça afirmações peremptórias capazes de responder quem é afinal

Enquanto os dentes

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“Enquanto os dentes da boca deram conta, ele mordeu, sustentou a vida que havia construído tijolo a tijolo, só que agora não dá mais”. Enquanto retorna para a casa dos pais, com os quais não tem uma relação que se poderia chamar de saudável, Antônio relembra fatos da sua vida marcada principalmente por violência. A tão imprevisível volta acontece após o protagonista na casa dos 40 anos tornar-se cadeirante, diagnosticado com uma doença degenerativa e incapacitado de continuar vivendo do seu sustento. Antônio anda alguns muitos passos para trás no jogo da vida. A casa dos seus pais revela um ambiente opressor no passado e que não dá mostras de ser algo muito diferente no futuro. O pai, um comandante da Marinha, é um homem rígido, machista, preconceituoso e nada amável. Tudo o que diz respeito a ele é acompanhado por memórias que revelam a convivência violenta dentro e fora de casa: os tapas, a reprovação, a decepção, a ausência. Com a mãe a história não é muito diferente, apesar de ma

Puro

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  “A religião é o ópio do povo”. Nenhum livro contemporâneo poderia traduzir melhor a frase escrita por Karl Marx em 1843 do que Puro , de Andrew Miller . Ambientado na Paris de 1785 pré-revolução francesa, um pouco experiente engenheiro é encarregado de por abaixo um cemitério e a uma igreja localizados no centro da cidade. “Por abaixo” é uma forma de dizer, porque parte da tarefa de Jean-Baptiste Baratte é esvaziar as mais de dezenas de sepulturas e administrar o deslocamento dos restos mortais para outra área da capital francesa. Originário de Bellême, cidade de características rurais localizada na região da Normandia, Baratte ainda guarda uma simplicidade camponesa que logo é contrastada com o dinamismo e modernidade da população parisiense. Paris está a um passo de se tornar moderna, o progresso bate à porta e a remoção do cemitério de Les Innocents já em desuso acaba se tornando um imperativo dos novos tempos. Apesar de desativado desde 1780 e de ser o principal responsável pe

A lanterna mágica de Mólotov

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Antes de mais nada: que preciosidade! A Lanterna Mágica de Mólotov é aquele tipo de livro que não se imagina que possa existir, seja pela sua densidade, pelo seu dinamismo ou pela sua proposta. Rachel Polonsky é historiadora e especialista em literatura russa. Durante seu retorno à Rússia, tem a oportunidade de morar no mesmo prédio onde figuras importantes da era stalinista viveram seus duas de glória e de decadência. No meio disso tudo, a autora tem a sorte de conhecer o banqueiro residente do apartamento que pertenceu a Mólotov e de ganhar as chaves que dariam acesso livre à biblioteca do “mais leal assecla sobrevivente de Stálin”. Assim, começa o relato meio pessoal, meio histórico sobre uma Rússia contemporânea e antiga ao mesmo tempo. Enquanto narra fragmentos da sua vida cotidiana em uma cidade marcada pelo tempo e pelas transformações que os anos modernos impuseram, Polonsky conta a história de personalidades e de lugares importantes para a era stalinista, que por sinal, é

Manual da faxineira

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Lucia Berlin foi uma mulher com uma vida cheia de histórias e esse fato fica bem representado em Manual da faxineira . O último livro da autora e publicado postumamente apresenta 43 contos através dos quais é possível acompanhar desde rememorações da infância vivida no norte e no sul dos EUA e no Chile até acontecimentos da vida adulta. Nascida no Alasca e vivendo parte do tempo em cidades mineradoras por conta do emprego do pai, Lucia morou em estados como Idaho, Montana, Arizona. Após a declaração da Segunda Guerra Mundial, a família constituída por ela, a mãe e a irmã se mudam para El Paso, onde vivem os avós maternos.   Por mais que El Paso, devido à sua proximidade do México e seus inúmeros estímulos sonoros, visuais e olfativos, tenha marcado positivamente a autora é o mesmo lugar onde eventos trágicos se desenrolaram. A relação ruim com a mãe e em parte com os avós, o alcoolismo dos parentes, a solidão, a ausência do pai, os ciúmes da irmã são fatos que se desenvolvem nesse mo

O amor de uma boa mulher

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  Diferente das outras resenhas essa será um tanto quanto pessoal, na medida em que reflete mais uma experiência de leitura do que uma análise literária. A mudança de abordagem se dá pelo fato de não ter apreciado a leitura. O amor de uma boa mulher , de Alice Munro , reúne 8 contos longos que falam sobre mulheres (como não poderia deixar de ser) e suas existências difíceis. Em todos os contos as personagens principais – as boas mulheres – têm vidas penosas e sacrificantes. São mulheres tristes, inseridas em relacionamentos infelizes sendo traídas, abandonadas, subjugadas, humilhadas ou menosprezadas, no entanto, firmes. São mulheres que mesmo sofrendo suportam tudo e não se rebelam. Por ironia, é essa atitude (ou deveria dizer, falta de atitude) que as tornam boas mulheres: a submissão. O fato de todas as personagens carregarem dor não foi o que me causou mais insatisfação. Para falar a verdade, ler mulher é ler sobre sofrimento. O que fez com que a experiência com o livro não foss

Jinga de Angola - A rainha guerreira da África

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    “Veja você, nós não entendemos. Nós estamos no meio [do nada]. Primeiro, vieram os alemães – e os australianos os expulsaram. Depois os japoneses expulsaram os australianos. Mais tarde, os australianos e os estadunidenses forçaram os japoneses a irem embora. Nós não pudemos fazer nada. Quando um kiap [um oficial administrativo] nos mandava carregar suas bagagens, nós as carregávamos. Quando um alemão nos dizia para carregar a bagagem dele, nós obedecíamos. Quando um japonês nos dizia para carregar a bagagem dele, nós tínhamos de carregar. Se não o fizéssemos poderíamos ser mortos. Tudo bem, é isso. Pegar ou largar. Nogat tok. Eu não disse nada demais, isso é como as coisas são, isso é a vida”.   A passagem acima corresponde a parte de um depoimento dado ao antropólogo canadense Kenelm Burrigde por um aldeão de Papua Nova Guiné. O livro, do qual o trecho foi retirado, foi lançado em 1995. Apesar de dizer respeito a culturas e tempos diferentes, essa passagem é importante para d