Orlando: uma biografia
Orlando, de Virginia Woolf, provoca um espanto parecido com o causado por Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Explico. Ambos são inovadores e impensáveis nas histórias que trazem. Na obra machadiana um defunto é quem conta sua história, já na virginiana a história contada por um(a) biógrafo(a) diz respeito a um garoto que ao longo de cinco séculos transmuta-se e torna-se mulher, no sentido mais literal possível.
Não bastasse a ousadia de
escrever uma biografia que abarca 500 anos da vida de uma mesma pessoa, Woolf
ainda presenteia o leitor com um tema ainda incomum naquela sociedade do século
XX: sexualidade. Orlando, um aristocrata nascido homem, depois de viver todas
as alegrias e angústias que uma sociedade patriarcal assegura aos
representantes do sexo masculino transformar-se após um transe de sete dias em
uma mulher e, de igual modo, passa a experienciar todas as alegrias e angústias
que cabem a uma representante do sexo feminino de qualquer época.
As alegrias podem ficar em
suspenso, uma vez que nem todas as mulheres concordariam que ser cortejada,
preocupada com a necessidade de casar e de ter filhos e com as necessidades da
casa constituem razões para entusiasmo. Por mais que tudo isso aconteça da
melhor forma possível, isto é, por opção e não por obrigação (afirmação que
também deve ser vista com ressalvas, uma vez que, no que diz respeito à mulher,
cabe-nos questionar o que realmente é feito pela nossa única vontade e não por
um resquício que seja de pressão social), Orlando entende a diferença que isso
gera em sua vida.
A primeira e mais óbvia é o
drástico tolhimento da liberdade. Enquanto era homem não havia preocupação com
vestimentas, corpo, casamento, casa, filhos, opinião pública, segurança...
Quase imediatamente após tornar-se mulher, Orlando vê-se invadida pela
preocupação de cobrir cada centímetro do corpo de modo a impedir o olhar
masculino indesejado e as consequências que tal ato pode acarretar. (Aqui faço
um parêntese para perguntar: qual menina não passou pelo mesmo processo quando
ainda criança começam a despontar indesejado de seios que precisam ser
escondidos por uma roupa antes desnecessária? Lembro quando minha mãe me falou
aos 7, 8 anos que a partir de então não poderia mais ficar só de calcinha
quando o jardineiro estivesse em casa. Foi horrível!).
“’Se a visão dos meus tornozelos
significa a morte para um sujeito honesto, que sem dúvida tem uma esposa e
família para sustentar, não posso deixar de mantê-los cobertos’, pensou
Orlando. No entanto, as pernas eram um de seus maiores atrativos, e isso a fez
pensar como era estranho que toda a beleza de uma mulher precisasse ser
encoberta para evitar que um marinheiro caísse do topo do mastro”.
A condição de mulher perpassa uma
série de modificações e adaptações que Orlando vai aprendendo serem necessárias
pela simples razão de ser agora um exemplar do sexo feminino, independente do
fato de ter sido homem no passado, algo que parte da sociedade tem
conhecimento. Acompanhada por valores como pureza, castidade e modéstia, a nova
mulher descobre que andar nas ruas londrinas mal iluminadas sem ser ameaçada e
que desfrutar de liberdade sexual para transar com quem quiser sem ser julgada só
é viável para homens, então começa a se vestir como tal; que a honra e
inteligência masculinas não pode ser ameaçadas, então a arte da enganação passa
a ser uma habilidade feminina para escapar de situações indesejáveis sem
ofender o outro, dentre outras situações.
Apesar de todas as soluções
engenhosas, Orlando se convence de que a mudança de sexo trouxe transformações
drásticas e irreversíveis. A partir de agora, a vaidade seria uma fiel
escudeira, bem como a necessidade de estar bonita e perfumada; a vergonha
andaria sempre junta e lhe impediria de mostrar seus escritos a qualquer
pessoa; o medo apareceria toda vez que andasse desacompanhada de uma figura masculina.
Assim como o passar dos séculos infligiram mudanças na sociedade, Orlando foi
absorvendo-as e mudando também.
No fim, independente da compreensão que temos sobre nós mesmos, seja como homem, como mulher, como ambos ou como nenhum dos dois, a sociedade e ainda o tempo tenderão a nos rotular nas duas únicas categoriais pensadas possíveis: masculino ou feminino. E por essa razão, valores, morais, sentimentos nos serão próprios e determinantes para o tipo de existência que pretendemos ter. Isso nem de longe significa que devemos aceitar sem reivindicação o que nos é imposto. Isso nos serve mais como um alerta de que temos batalhas a vencer e que autoras como Virginia Woolf têm muito a nos iluminar e ajudar na elaboração das melhores estratégias.
Orlando: uma biografiaVirginia Woolf
Penguin
2014
304 páginas
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