A lanterna mágica de Mólotov

Antes de mais nada: que preciosidade! A Lanterna Mágica de Mólotov é aquele tipo de livro que não se imagina que possa existir, seja pela sua densidade, pelo seu dinamismo ou pela sua proposta. Rachel Polonsky é historiadora e especialista em literatura russa. Durante seu retorno à Rússia, tem a oportunidade de morar no mesmo prédio onde figuras importantes da era stalinista viveram seus duas de glória e de decadência. No meio disso tudo, a autora tem a sorte de conhecer o banqueiro residente do apartamento que pertenceu a Mólotov e de ganhar as chaves que dariam acesso livre à biblioteca do “mais leal assecla sobrevivente de Stálin”. Assim, começa o relato meio pessoal, meio histórico sobre uma Rússia contemporânea e antiga ao mesmo tempo.

Enquanto narra fragmentos da sua vida cotidiana em uma cidade marcada pelo tempo e pelas transformações que os anos modernos impuseram, Polonsky conta a história de personalidades e de lugares importantes para a era stalinista, que por sinal, é o período de atuação de Mólotov. Mólotov, portanto, funciona como uma fio condutor que conecta a autora e o tempo que ela representa com a Rússia e a sociedade que marcaram os duros anos do governo Stálin. E nada passa despercebido. Desde a arquitetura dura, sóbria e desgastada das cidades periféricas a Moscou até os artistas e cientistas ilustres que tornaram o país referência na literatura (Dostoiévski, Tchékhov, Púchkin, Mandelstam, Herzen), na medicina (Pávlov), na política (Khruschóv, Stálin, Mólotov), na teoria (Kollontaï, Trótski, Plekhánov), nas ciências (irmãos Vavílov, Sakharov), na história (Likhatchov, Karamzin), entre outros.

Há lugar para tudo, inclusive para relatos sobre os costumes. No capítulo sobre a bánia, uma espécie de sauna pública, Polonsky parte de uma experiência particular para discorrer sobre a importância desse estabelecimento para a cultura local e estrangeira. Permeando o imaginário europeu que a tinha como local ritualístico e curativo, a bánia também tinha um caráter socializador na medida em que colocava em íntimo contato “as europeizadas classes altas” com a “Rússia do campo”. Algo muito parecido com o papel desempenhado pelas praias brasileiras, as quais por mais que alguns tentem evitar, acabam juntando ricos e pobres.

Em meio à viagem empreendida através do país-continente russo, a autora percorre cidades revolucionárias, cidades rurais, cidades geladas, cidades históricas. O lugar, isto é, a concepção espacial tem um significado. Em um país marcado pela vastidão e pela monumentalidade do referenciais paisagísticos pensar e sentir o espaço é parte da vivência russa, e em especial, moscovita. Também se torna parte e imperativo, se qualquer pessoas quiser tirar maior proveito da viagem pelo país, conhecer sua cultura e as idiossincrasias da vida cotidiana. Percorrer os inumeráveis museus espalhados pelas menores e mais afastadas cidades, andar de trem na ferrovia transiberiana e observar seus passageiros, caminhar pelas ruas identificando cada prédio histórico, comprando livros e catálogos raros que contam um pouco mais sobre a história local, visitando igrejas, templos e xamãs.

Todas essas experiências compõem A Lanterna Mágica de Mólotov de maneira a aguçar o interesse e ensinar ao leitor sobre a história russa. A contribuição do relato de Polonsky, assemelhado a um diário de viagem, é garantir à narração dos acontecimentos históricos um dinamismo que não fica restrito à informação de nomes e datas. Ao final, além de todo o amor que a autora nutre por um território marcado pela contradição, fica claro a importância de se contar a História lançando mão de outras fontes igualmente históricas como a literatura.


A lanterna mágica de Mólotov

Rachel Polonsky
Todavia
2018
365 páginas
tradução: Sergio Santos Filho
 

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